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Alpiarça e Gil Vicente
Mas se as referências documentais têm particular importância para nos ajudarem a compreender o que era Alpiarça há centenas de anos atrás, são no mínimo curiosas, outras referências com que nos deparamos nas obras de escritores e poetas famosos no mundo das letras portuguesas.
A primeira citação que vos apresento, aparece na tragicomédia Nau D`Amores, de Gil Vicente, que se “representou ao muito poderoso Rei D. João, o terceiro, à entrada da esclarecida e mui catholica Rainha D. Catherina nossa Senhora em a cidade de Lisboa, era de 1527”, pela qual ficámos a saber que a povoação de Alpiarça pertencia ao mestrado de Avis.
(Fala do Frade)
Não, mas vae-te tu ao Crato,
Porque Mafona e Mafamede
Afaque e Alfafaque
São do Bispo d`Alencrastro,
Almofariz e almofada,
Almoface e almofreixe,
Alfarroubeira e Alcouchete
E Alqueidão
Sandas terras do Soldão
E Alfaiates e Alfanete
Alfareme e Alcaprema
Alpiarça e Alfazema
E Alpedriz
São do mestrado d`Avis.
Ora vai por esses caminhos,
Irás ter ao chafariz
Ou á fonte,
E dá ó demo os raposinhos,
Como todo o mundo diz
Lava bem esses focinhos,
E não cheirarás a monte.
Ora vae.”
Alpiarça na poesia da Marquesa de Alorna
É também grato verificar que Alpiarça e a ribeira do Alpiaçoulo aparecem referenciadas na obra da notável poetisa D. Leonor de Almeida Lorena e Lencastre, Condessa de Oeyenhausen, 4ª Marquesa de Alorna. Ficou também conhecida pelo nome de Alcipe, titulo com que foi celebrada pelos poetas da Arcádia, do qual faziam parte entre outros, Manuel Maria Barbosa du Bocage, José Agostinho de Macedo e Pato Moniz.
Dizia então a Marquesa de Alorna numa Ode sobre a projectada junção da Vala de Alpiarça com o Alpiaçoulo em Almeirim (imitada da Ode 6ª do livro 1º de Horácio), escrita entre os finais do século XVIII, princípios do XIX.
…
A mim pouco me importa a austera Esparta
Nem os bosques frondosos
Nem as planícies férteis de Larissa
Me tocam tanto n`alma
Com o ameno Almeirim, o Alpiaçoulo;
N`ele a Ninfa amorosa
Murmura na caverna, e chama a vala
Que d`Alpiarça desce:
Seus cristais fecundantes, confundidos,
Refrigerando os prados,
A saúde, a abundância os nossos lares
Virão trazer alegres.
Passos Manuel e Garrett em Alpiarça
No século XIX Alpiarça está intimamente ligada a Passos Manuel, um dos grandes vultos do liberalismo português do século XIX e também a um dos maiores escritores de língua portuguesa, o Conselheiro João Batista Leitão de Almeida Garrett, quando este é convidado daquele para uma visita às suas propriedade no Ribatejo, circunstância apontada como estando na origem das “Viagens na minha terra”, um dos livros da mais bela prosa da literatura portuguesa.
O convite para a visita a Alpiarça é endereçado a Garrett por Passos Manuel, então a viver na Casa da Alcáçova, em Santarém, numa carta que lhe envia no dia 6 de Junho de 1843, onde lhe promete muitas e agradáveis surpresas através das “pedras de Santarém”, tendo como cicerone o Padre Vasconcelos, e um passeio pelos campos de Alpiarça. Finalmente aliciava o escritor com a promessa de um jantar na Adega do Toco servida pelo feitor Garcia, um homem que estava ao serviço de Passos Manuel e que em tempos não muito recuados fora cavaleiro de D.Miguel.
A proposta era aliciante e Almeida Garrett, fez-se mesmo ao caminho, começando a viagem de barco, Tejo acima, para depois retomar o passeio pelos caminhos e terras do Ribatejo. Em boa hora o fez porque lhe terá servido de inspiração, como dissemos, para essas magníficas “Viagens na minha Terra”.
Alpiarça e Almeirim
Alpiarça começou por ser freguesia do concelho de Santarém, do qual foi desanexada em 1835 por estar situada na margem esquerda do Tejo, tal como aconteceu com Muge, Benfica e Raposa, sendo todas incluídas administrativamente no concelho de Almeirim e, em termos judiciais, no julgado da Chamusca. Esta remodelação territorial foi causada pela entrada em vigor do Código Administrativo elaborado pelo governo de Passos Manuel.
A Organização do Distrito Administrativo de Santarém refere que Alpiarça tinha em 1836, 454 fogos, número que subia para 490 , seis anos mais tarde, o que equivaleria a cerca de 2.000 pessoas, enquanto que Almeirim, sede do concelho, tinha registados 383 fogos. Em 1856 a diferença populacional entre as duas povoações era ainda mais significativa, pois enquanto a sede do concelho tinha 2100 pessoas, a freguesia de Alpiarça tinha já 2700 habitantes , entre os quais se contavam 2 bacharéis, 5 carpinteiros, 1 cirurgião, 51 proprietários, 2 boticas, 10 mercearias, 6 padarias e 6 tabernas .
A importância da freguesia media-se também pelo facto de ali residirem o médico facultativo do concelho, o cirurgião, os bacharéis, o conselheiro. Politicamente também essa influência se fazia sentir, pois são dali naturais muitos dos vereadores e Presidentes de Câmara que dirigem os destinos do concelho de Almeirim, bem como muitos dos membros do Conselho Municipal, órgão criado em 1842 pelo Código Administrativo de Costa Cabral, que, apesar de suspenso, veio a reaparecer em 1896, sob a forma de Assembleia dos 40 maiores contribuintes.
É particularmente significativo o facto de vários habitantes de Alpiarça terem ocupado durante 27 anos a Presidência da Câmara de Almeirim, no período que vai de 1836, altura em que se integrou neste concelho, até 1914, ano em que a própria vila foi elevada a concelho. Por exemplo, entre Janeiro de 1839 e Dezembro de 1859, a Câmara foi presidida durante 17 anos ininterruptamente por homens de Alpiarça, pois só durante um ano completo (1840) e mais dois meses em 1842 é que o lugar foi preenchido por habitantes de Almeirim, o que atesta bem da influência política dos homens de Alpiarça, que eram sobretudo grandes lavradores que tinham aderido à causa do liberalismo. A título de curiosidade deixamos os nomes desses presidentes da Câmara de Almeirim oriundos de Alpiarça:
Em 1939 o cargo foi ocupado por Francisco Barnabé Barroso; de Janeiro de 1841 a Maio de 1842, Joaquim Gomes Calado; de Julho de 1842 a Dezembro de 1842, Inácio Gil de Sousa Girão; 1843 e 1844, Celestino Almendro; de 1845 a Maio de 1846, Joaquim Pedro Durão; de Maio a Setembro de 1846, José da Costa Jacob; de Setembro de 1846 a Março de 1847, José Maria Barroso; de Março de 1847 a Dezembro de 1849, Inácio Gil de Sousa Girão; de Janeiro de 1850 a Março de 1852, Joaquim Pedro Durão; de Março de 1852 a Junho de 1854, Jacinto Augusto de Sousa Falcão; de Junho de 1854 a Dezembro de 1859, António da Costa Lima; 1874 e 1875, José António Simões; 1892 a 1895, Jacinto Augusto dos Mártires Falcão.
A área da freguesia não era muito grande, teria mais ou menos a mesma área que o concelho agora tem, mas era terra de boa agricultura, habitada por gente que fazia da terra o seu único modo de vida, nomeadamente por um bom número de seareiros, mas muito especialmente por grandes lavradores, o maior dos quais era João de Sousa Falcão, que se distinguia pela inovação e actualização constante que mantinha nas formas de “amanhar a terra”, sendo um dos primeiros em todo o Ribatejo a introduzir a lavoura mecânica. O seu espírito empreendedor valer-lhe-ia o título de 1º Visconde de Alpiarça, atribuído pelo rei D. Luís em decreto publicado no dia 17 de Setembro de 1877.
Alpiarça vinha-se desenvolvendo cada vez mais, sobretudo em relação a Almeirim, de quem dependia administrativamente. É este crescimento acentuado que poderá explicar o desejo de autonomia que vinha ganhando corpo ano após ano. A comprovar essa influência estão os apontamentos deixados pelo médico Guilherme Tiago de Couto, em 1859, na “Breve notícia de Almeirim”, onde ficamos a conhecer alguns factos interessantes e ter uma noção mais exacta sobre alguns dos usos e costumes na nossa terra em tempos mais recuados, pelo que será interessante apresentar aos leitores o que ali vem escrito sobre Alpiarça e seus arredores:
“Existe uma nascente no Casalinho, perto da Atela, dependência de Alpiarça, que tem grande quantidade de sulfureto de ferro em dissolução, donde se tiram bons resultados como medicamento nas dispepsias e outros diferentes padecimentos gástricos. Em Alpiarça a água de que se faz uso é de poços, em que este lugar abunda, porém as pessoas abastadas bebem da água do Casalinho, que, conquanto seja férrea como já disse, é preferencial à dos poços.
A gente do campo de Almeirim quase exclusivamente se alimenta de broa, legumes, toucinho, arroz e batatas, todavia na vila de Almeirim e Alpiarça a povoação em geral sustenta-se de carne, pois nestas localidades há talho de carneiro e vaca quase toda a semana e quase todos matam, no tempo, o seu porquinho, que compram, ou mesmo criam.
Em Alpiarça produzem-se muitas hortaliças, que não só produz para o seu consumo, mas que abastecem todo o concelho (de Almeirim).
Finalmente, de frutas há escassez, à excepção de algumas laranjas, figos, melancias e melões.
Existem moinhos hidráulicos (de moinho horizontal - rodízios), na ribeira de Vale de Cavalos e na ribeira do Atela e existem moinhos eólicos, no Cambique e no Outeiro.
Em diferentes épocas do ano funcionam fornos de telha junto ao Vale de Tijolos e no Vale do Forno, um dos quais é pertença da Câmara Municipal de Almeirim.
As azenhas trabalham todo o ano e são movidas pelos nascentes do Casalinho e do Atela, moem trigo, milho e centeio, porém a maior quantidade é de milho de Santarém e também descascam arroz.
Os jornais e salários que se pagam são excessivos, não só em razão da morosidade dos operários nas suas obras, mas da pouca perfeição e mau acabamento delas.
Um pedreiro ganha por dia 480 réis; um carpinteiro ganha também 480 réis; um servente e um trabalhador de enxada 240 réis; um criado de servir ganha 16:800 e uma criada 8:000 réis.
Em cada fogo há em geral os seguintes objectos: enxada, cão e burro.
A lavoura aqui faz-se em grande e em pequeno ponto, isto é, há as grandes lavouras, por exemplo a de João de Sousa Falcão, que tem este ano semeados noventa moios de trigo e as pequenas lavouras, ou a dos seareiros que são imensas.
Os trabalhadores de enxada são muito bons e as enxadas que usam são das melhores que tenho visto.
Em Alpiarça a igreja é um barracão. Os habitantes já pediram, e com razão, madeiras e meios pecuniários para a construírem de novo .
Há unicamente duas escolas régias de ensino primário no concelho de Almeirim: Uma na vila e teve o ano passado 38 discípulos matriculados e outra no lugar de Alpiarça e teve 43 matriculados.
Quanto a mestras há muitas, porém nenhuma paga pelo governo, ensinam a ler, escrever e cozer.
No Verão a vila anima-se: há os descantes, os bailes de roda, as eiras, as descamisadas dos milhos e, após elas, o fabrico do vinho.”
Como já vimos, muitos foram os presidentes e vereadores da Camara Municipal de Almeirim oriundos de Alpiarça, o que aconteceu sobretudo até 1894, com algumas interrupções pelo meio. Não foi sempre pacífica a convivência na Câmara entre os vereadores alpiarcenses e o restante executivo, e estou a lembrar-me por exemplo do que aconteceu em 14 de Agosto de 1889, quando o “grupo de Almeirim” na Câmara, por intermédio do seu Presidente, Deodato Rodrigues Pisco, apresenta uma proposta para levantar metade dos fundos de viação, que era uma verba de todo o concelho, depositados na Caixa Geral de Depósitos, para pagar obras relativas ao abastecimento de água a Almeirim e para construção duma capela no cemitério da mesma vila. A proposta foi aprovada por maioria, com os votos contra dos vereadores residentes em Alpiarça, nomeadamente de António da Silva Patrício, que era Vice-presidente da Câmara, o qual dita para a acta da sessão o seguinte protesto “António da Silva Patrício, Vice-presidente desta Câmara, protesta contra a deliberação da maioria da Câmara na sessão de hoje com respeito ao levantamento de metade do dinheiro que está na Caixa Geral de Depósitos, pertencente à viação do mesmo concelho, para águas e nova capela do cemitério, isto com grande prejuízo para a freguesia de Alpiarça, que tem direito à parte do dinheiro que se quer levantar e que tem tanto, ou mais, precisão de águas, como Almeirim, porque nesta vila há já uma nascente pública a menos de 1 quilómetro com boa água e em Alpiarça quem quer beber boa água tem de andar a pedir a particulares para lhe deixar tirar dos seus poços. Com respeito à capela no cemitério têm-na à custa dos seus paroquianos, por isso protesto pelo levantamento que se quer fazer do dinheiro da viação, sem se dividir com igualdade para a freguesia de Alpiarça para águas ou outros melhoramentos de que muito precisa”.
O Presidente não concordou com o protesto “por ser menos verdadeiro na parte que diz respeito ao abastecimento de águas para esta vila, por ter um poço a menos de 1 quilómetro. Existe, é verdade, mas com as condições piores possíveis, como se pode provar com pessoas competentes…
Com respeito à capela do cemitério é uma obra de tão reconhecida urgência que logo à primeira vista se reconhece inadiável a sua construção e que por isso, sendo o cemitério municipal, cabe a esta Câmara a obrigação de proceder à construção da respectiva capela”.
Foi para a frente o levantamento da verba em causa, apesar dos protestos veementes dos homens de Alpiarça, que ainda ficariam mais melindrados com os seus colegas de Almeirim quando estes decidiram não comparecer à inauguração da nova Igreja de Alpiarça que teria lugar poucos dias depois, mais propriamente em 11 de Agosto, e de cuja comissão de inauguração pertencia o próprio António da Silva Patrício, que, como referimos, era vice-presidente da Câmara de Almeirim. Mais à frente daremos pormenores sobre os acontecimentos que rodearam a construção e inauguração do novo templo de Alpiarça.
Estas animosidades iriam servir de pretexto para a criação do concelho de Alpiarça em 1914, com os peticionários a argumentarem que “havia antipatia entre as duas freguesias” e que, por esse facto, não poderiam manter um relacionamento amigável, pelo que o melhor seria Alpiarça tornar-se independente do concelho a que pertencia.
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